Aracaju (SE), 28 de novembro de 2025
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 28/11/2025 às 08:37
Pub.: 28 de novembro de 2025

Um santo em vida e pós-morte :: José Lima Santana

José Lima Santana*

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal/José Lima Santana)

Zé de Nelson do finado Cabral da Lagoa Cheia sentia o peso da idade. Acabara de chegar aos 80 anos, ainda labutando, desde os primeiros sinais da aurora e indo até que as primeiras estrelas enfeitassem o céu. Engolia um de-comer lá pelas oito da manhã, um cafezinho amuado com cuscuz ou batata doce, um naco de requeijão ou de queijo de coalho, abóbora de leite, quando era tempo, e meio bule de café preto, torrado em casa, amargo. Abominava o açúcar. Por volta da uma da tarde, batia para o bucho um prato de feijão com farinha e carne variada: de bode, de porco ou de boi. Carne geralmente guisada, ou frita, como se dizia ali no abrir do sertão, onde ainda corria um ou outro riacho, mesmo no verão. Dali para cima, o sol bebia tudo que era água de riacho, de tanque ou de poço. Água nenhuma demorava a ser devorada pela boca sedenta do sol, de novembro a abril. 

Aquele dia, era uma terça-feira. Zé de Nelson curava a bicheira de uma novilha. Lidava sozinho. Os dois filhos tomaram o rumo de São Paulo, para tentar a vida, fazia um lote de anos. Muita gente metia-se num caminhão pau-de-arara e se jogava para a cidade grande. Partes do sertão estava se despovoando. Pudera. A lida no campo não dava para juntar duas camisas. O sertanejo que sofria ali, poderia sofrer acolá. Tentava-se, então. Não dera conselho aos filhos. Arrancar daquele chão bruto uma vida melhor, era muito difícil. Em São Paulo, os filhos constituíram famílias e por lá ficaram.

Em casa, apenas ele, Zé de Nelson e Dona Angelita, a esposa, que beirava os setenta e cinco, e era dócil, como uma manga espada, daquelas que tinham no quintal. O marido era um “bom homem”, como ela não se cansava de dizer. Homem de um coração de seda. Benfeitor do povoado, acudia quem dele tivesse precisão. Favores ao seu alcance, jamais eram deixados para lá. Ele os fazia de bom grado. Pobre ajudando pobres, tão esquecidos pelo setor público. Ele recebia a reverência de todos dali e de mais distância.  

Vereadores e prefeitos de todos os Partidos o aclamavam. Até um deputado federal comeu do seu almoço, preparado por Dona Angelita que, em ordem de pobre, sabia preparar uma galinha caipira, na cabidela, um pinicado de couve com jabá, que era de dar água na boca. E a farofa d’água, temperada? E o feijão mulatinho com toucinho e coentro? O deputado se empanturrou. 

Zé de Nelson era dado a levar as pessoas às rezas, na Capelinha do povoado, dedicada a São Francisco de Assis, onde duas vezes por ano aparecia o padre da cidade. Ninguém jamais soube de uma praga ou um maldizer saídos de sua boca. Não! “Esse homem é um santo em vida”, alardeava João de Mariquinha, o ferreiro do lugar. 

Naquela terça-feira, o sol subiu no céu, tiniu, pareceu espalhar tições fumegantes sobre o mundo, fez o vento sumir. Nenhum galho dos arvoredos que ainda continham folhas, como juazeiros e umbuzeiros, tremulava. No fim da tarde, a quentura era sentida. Calorão. O suor fazia a camisa rasgada, de pano barato, grudar nas costas. Remédio passado na bicheira. A novilha saiu a passos lentos, parecendo aliviada da comichão causada pelo berne. O calorão continuou nos dias seguintes. Mormaço pesado da quarta-feira ao sábado.

No domingo, uma ventania das seiscentas pegou o povoado de surpresa. Ventos raivosos rugiram por uma hora e tanto, derrubando casas e árvores. Casas fraquinhas, de taipa e telhas. Por onde a rajada de vento passou, não ficou nada de pé. Até parecia que as portas do inferno tinham sido abertas e o sopro do diabo se espalhou pelo mundo. Foi o que disse João de Maria de Doca, velho rezador do Araticum, ali perto. Umas seis pessoas perderam suas vidas, carregadas pelo tufão. Sim, foi um tufão, o primeiro de que por ali se tinha conhecimento. Uns falavam em cinco, sete e até oito mortos, mas, a Prefeitura, dias depois, confirmava seis. Um desmantelo da desgraça. E muita desgraça. Mães amamentando filhos ao relento, crianças de pernas finas e buchos crescidos, onde vermes nojentos se refestelavam, idosos, como Zefinha de Tonho de Cid Capitão, de cabeça e braços escorrendo sangue e muito mais misérias. O tufão desceu e subiu, não alcançando nenhum outro povoado. 

Dentre os seis mortos, estava Zé de Nelson. Consertava uma cerca quando o tufão o atingiu em cheio. O corpo rodopiou no ar, subiu e espatifou-se sobre um pé de cajarana, de braços abertos, como se crucificado estivesse. Ao retirarem o corpo octogenário, um sorriso angelical estava nos lábios do “santo em vida”, agora mortinho da silva. 

Muito não tardou para que o pé de cajarana se tornasse um lugar de peregrinação. As devoções populares nascem de um-nada. Crescem e se esparramam. De início, umas cem pessoas se aglomeraram no pé de cajarana, um ano após o tufão. Depois, mil. Cinco anos passados, uma multidão. O “santo em vida” tronou-se “santo” pós-morte. Na boca e no coração do povo, sob os protestos do padre Juca Porto, que não compreendeu a devoção popular.

*Padre (Paróquia Santa Dulce dos Pobres – Aruana - Aracaju), advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.

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