Aracaju (SE), 01 de maio de 2025
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 01/05/2022 às 15:21
Pub.: 02 de maio de 2022

Amarelo enxofrado :: Por José Lima Santana

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

José Lima Santana - Foto: Arquivo Pessoal

José Lima Santana*

Manezinho de Zé de Donana era o maior vendedor que o comércio da região do Agreste tinha visto em atuação. Ele era capaz de vender até avião pegando fogo. Diante de sua lábia, não haveria de faltar compradores. Homem de modos simples, sempre arrastando os pés com um par de sandálias surradas, maneiroso, voz macia, encantava até muriçoca. “Lá vem o Amarelo Enxofrado”, dizia Tintilo Cabeça Oca, pai de Raimundinho de Tintilo e de Celinha de Maria de Tintilo, jovens promissores nos estudos ginasiais. Mas, Tintilo e Manezinho eram amigos de infância. Juntos pintaram o sete, roubando frutas em diversos sítios, dando cambalhotas no açude, fazendo algazarra no Cine São José, nas noites de segundas-feiras, quando eram exibidos filmes de bangue-bangue e imperdíveis seriados. Adolescentes, juntos tomaram gosto e jeito para jogar sinuca. Para os arrasta-pés no salão do “Hoje Tem” e para as idas às casas suspeitas da Rua do Bomfim. “Amarelo Enxofrado” foi o apelido que o pai de Tintilo, Amaro de João de Jacinto, botou em Manezinho, quando este contava lá com os seus seis ou sete anos e já era o mais falante moleque que uma mulher tinha parido. Ao menos, ali no Tabuleiro Largo. 

Manezinho, aos dezoito anos, montou uma barraca de miudezas na feira do Tabuleiro. Depois, expandiu o seu cacete-armado para as feiras de Mata Grande e Morro Bento. Aos vinte e cinco anos, já casado, era dono da “Loja Donana”, homenagem à sua mãe, a maior das doceiras, que todos os mundos já viram. E em quantos mundos houvesse, neles não se encontrariam doceiras com as mãos de fada de Donana de Zé do finado Amintas Brejeiro. Hum...! As saquaremas, como eram chamadas as bolachinhas de goma, as queijadas, as broas de milho ou de ovos, os manauês de milho, arroz, puba ou macaxeira, as cocadas preta, branca ou puxa, tudo era um encanto para os apreciadores de guloseimas açucaradas. A cocada-puxa, então! Queimadinha, para puxar nos dentes, ou a cocada branca, quentinha, saída da forma (ou folha de alumínio, como era preferível dizer) com um bolachão de coco, da padaria de Amadeus e uma jade, refrigerante disputado pela meninada, na bodega de Tonho Bufa. Nem o manjar dos deuses servia de comparação. 

Manezinho prosperou. Seguiu o tino da mãe, Donana, e do pai, Zé do finado Amintas Brejeiro, negociador de bodes e carneiros, comprando e vendendo, no Agreste e no Sertão. Filho único, Manezinho teve o amparo dos pais, desde que montou a primeira barraca na feira. Capitalzinho para iniciar o comércio ambulante. Girento que só ele, em poucas semanas pagou o empréstimo tomado aos pais. E foi prosperando. Da “Loja Donana” partiu para um “Mercadinho”. Dali para um império comercial, estendido para outras seis cidades. Até que botou os pés na capital. Ele mesmo treinava seus gerentes e vendedores. Freguês era para ser tratado com finuras devotadas às excelências. “Sem freguesia bem atendida, eu nada tenho e vocês não comem”, repetia ao seu pessoal. 

Aos cinquenta anos, dinheiro para Manezinho era folha. Não era sovina, unha de fome, mas não esbanjava. Continuava a calçar um par de sandálias surradas, no correr do dia a dia. Dirigia o próprio carro, que não era de luxo. No anonimato, ajudava muita gente e algumas instituições de caridade. Para Tintilo Cabeça Oca, Manezinho continuava sendo o mesmo “Amarelo Enxofrado” dos tempos de vadiagem. Quanto mais os anos corriam para eles, mais a amizade crescia. 

Tintilo aposentou-se como carteiro. O casal de filhos formou-se. Raimundinho era engenheiro e Celinha, assistente social e professora universitária, metida com os pobres das periferias. Lutando por eles junto às autoridades, ensinando-lhes a buscarem seus direitos. Não demorou para ser tachada de comunista. Em 1971, foi presa com outros colegas. Sofreu o diabo. O pai apelou para o amigo rico. Manezinho tinha uma filha casada com um deputado, que era primo de um coronel, que servia em Brasília. O coronel mexeu daqui, mexeu dali, e acabou conseguindo a soltura da professora. Para tanto, aconselhou que ela não se metesse mais com o que vinha fazendo, para evitar novas prisões e até a perda do cargo na Universidade. Uma ameaça e tanto! 

Em 1978, Manezinho de Zé de Donana foi convidado a ser candidato a vice-governador na última eleição indireta para a chefia dos governos estaduais. No início, não aceitou. Mas, os apelos de muitos amigos, ligados à política, dentre eles o seu genro deputado, acabou aceitando. Indicados os nomes ao Palácio do Planalto, Manezinho foi vetado. Motivo? O fato de ter apoiado financeiramente um projeto de grande valia para os pobres do Araticum, sob a orientação da filha do velho amigo Cabeça Oca, a professora Celinha, taxada de comunista. Estava tudo anotado numa ficha amarelada, no órgão de Segurança Nacional: “Manoel Júlio de Andrade, comerciante, simpatizante e financiador das atividades subversivas a cargo da professora Célia Maria do Amarante. Manter vigilância”. A ficha foi mostrada ao deputado federal Arnaldo Ribeiro de Souza, genro de Manezinho, que era do partido situacionista. Este disse ao agente do governo: “O que vocês estão fazendo, com o intuito de ‘salvar o Brasil do comunismo’, não passa, em parte, de muita besteira. Manoel Júlio de Andrade é um dos maiores empregadores do meu Estado, que tem me apoiado, a outros políticos do nosso partido e também da oposição, não posso negar. Tem dado anônimas contribuições para mitigar a miséria de algumas comunidades carentes, que deveriam ser socorridas pelo poder público. Vocês estão indo longe demais. E estão fora do eixo”. O agente do governo federal encrespou. Disse despautérios. O deputado, vice-líder do governo na Câmara, manteve-se altivo.

Recorrendo à presidência do partido da situação, o deputado conseguiu “limpar” a ficha do sogro “subversivo”. Este, contudo, não aceitou mais ser candidato. Amuou. Não aceitaria as torpezas de certos agentes do governo. Era um cidadão de bem, empreendedor, que não se furtava em ajudar, no silêncio, quem merecesse o seu apoio. Esperou o tempo passar. Em 1986, elegeu-se senador constituinte. E, assim, Amarelo Enxofrado deixou o nome gravado na nova Constituição. Porém, desiludido com os desarranjos da política, renunciou ao mandato quatro anos depois. Criou o “Instituto Dois Amigos”, para cuidar de crianças com deficiências. A filha de Tintilo Cabeça Oca, outrora tachada de comunista, o ajudava. Bons frutos foram colhidos. Muitos bons frutos.

*Padre, advogado, professor da UFS, membro da ASL, da ASLJ, da ASE, da ADL e do IHGSE.


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