O STJ Reforça Direitos do Consumidor na Rescisão de Contratos Imobiliários: Entenda a recente decisão da Ministra Nancy Andrighi :: Por Marcos Antonio Ribeiro Rita
Marcos Antonio Ribeiro Rita*

A aquisição de um imóvel é, para muitos brasileiros, a realização de um sonho e um dos maiores investimentos da vida. No entanto, por diversas razões – desde dificuldades financeiras inesperadas até um simples arrependimento – pode ser necessário desfazer o negócio. É nesse cenário que entra em jogo a complexa relação entre a "Lei do Distrato" e o Código de Defesa do Consumidor, um tema recentemente pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ em uma decisão fundamental liderada pela Ministra Nancy Andrighi.
Para entender o alcance dessa decisão, precisamos primeiro contextualizar as leis envolvidas.
A Lei do Distrato
Em 2018, foi promulgada a Lei nº 13.786, conhecida como a "Lei do Distrato". O objetivo principal dessa legislação foi trazer mais segurança jurídica para o mercado imobiliário, tanto para consumidores quanto para construtoras e loteadoras. Antes dela, havia muita incerteza sobre como deveriam ser feitas as rescisões de contratos de compra e venda de imóveis, especialmente quando o comprador decidia desistir do negócio.
A Lei do Distrato estabeleceu regras claras para a retenção (o valor que a vendedora pode ficar) e a restituição (o valor que deve ser devolvido ao comprador) em caso de desistência. Por exemplo, ela previu que, dependendo do tipo de imóvel (se em incorporação imobiliária ou loteamento), a vendedora poderia reter uma porcentagem maior dos valores pagos, além de prever a cobrança de "taxa de fruição" (um valor pelo uso do imóvel) e, em alguns casos, até a devolução do dinheiro de forma parcelada.
O foco da Lei do Distrato era padronizar essas condições, evitando que cada caso fosse decidido de uma maneira diferente nos tribunais e, assim, protegendo o setor de construção civil de grandes perdas.
O Código de Defesa do Consumidor
No entanto, antes mesmo da Lei do Distrato, já existia no Brasil uma legislação robusta para proteger o cidadão em suas relações de consumo: o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Este código é uma lei de ordem pública e interesse social, o que significa que suas normas são de aplicação obrigatória e visam proteger a parte mais vulnerável em uma relação de consumo – o consumidor.
Entre os princípios fundamentais do CDC, destacam-se a proteção contra cláusulas abusivas (condições contratuais injustas ou excessivas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada) e a proibição do enriquecimento sem causa (situação em que uma parte se beneficia indevidamente às custas da outra). Especificamente em contratos de compra e venda de imóveis, o CDC proíbe a perda total ou substancial das quantias pagas pelo consumidor em caso de rescisão por sua culpa, garantindo que ele receba de volta a maior parte do que pagou.
O Julgamento da Ministra Nancy Andrighi: O CDC na Frente
Eis que chegamos ao ponto central: como compatibilizar a Lei do Distrato, que buscava regras mais rígidas, com o CDC, que visa proteger o consumidor? Essa foi a questão enfrentada pelo STJ no Recurso Especial nº 2106548 - SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi.
Em um voto detalhado e preciso, a Ministra Nancy Andrighi e a maioria da Terceira Turma do STJ decidiram que, mesmo em contratos celebrados após a Lei do Distrato, quando há uma relação de consumo (ou seja, uma construtora/loteadora vendendo para um consumidor final), o Código de Defesa do Consumidor deve prevalecer.
Vamos aos pontos cruciais dessa decisão, que alteram e clarificam a prática no mercado:
1. A Supremacia do CDC em Relações de Consumo
O STJ entendeu que, havendo um conflito entre as normas da Lei do Distrato e as do CDC em uma relação de consumo, o CDC é a norma mais especial e de caráter principiológico. Isso significa que, por proteger a parte vulnerável e por seus princípios serem mais abrangentes para a defesa do consumidor, o CDC deve ser aplicado prioritariamente. A Lei do Distrato regulamenta os contratos de compra e venda de forma geral, mas o CDC se aplica especificamente quando há uma relação de consumo, tornando-o superior nesse contexto.
2. Limite de Retenção: A Regra dos 25% dos Valores Pagos
Um dos pontos mais importantes é o limite para o que a vendedora pode reter. O STJ reafirmou que, em caso de desistência por culpa do comprador, a retenção pelo vendedor não pode ultrapassar 25% dos valores efetivamente pagos pelo consumidor.
. Por que isso é tão relevante? A Lei do Distrato permitia que a cláusula penal e despesas administrativas fossem limitadas a 10% sobre o valor atualizado do contrato. Em muitos casos, especialmente no início do pagamento das parcelas, 10% do valor total do contrato poderia ser muito superior a 25% do que o comprador já havia pago, levando a uma perda praticamente total para o consumidor.
. A decisão da Ministra Nancy Andrighi deixa claro que essa retenção de 25% é de natureza indenizatória e cominatória, ou seja, ela já abrange todas as despesas que o vendedor poderia alegar ter tido (administrativas, promoção, etc.). Isso impede que a vendedora acumule descontos de diversas naturezas que, somados, resultariam em uma penalidade excessiva para o consumidor, violando os artigos 51, IV, e 53 do CDC e o princípio do enriquecimento sem causa.
3. Taxa de Fruição: Indevida em Lotes Não Edificados
Outra questão central é a "taxa de fruição", que seria um valor pago pelo "aluguel" ou "uso" do imóvel enquanto ele esteve com o comprador, antes da rescisão. A Lei do Distrato prevê a possibilidade de cobrança de 0,75% sobre o valor atualizado do contrato ao mês.
Contudo, a decisão do STJ é enfática: a taxa de fruição não é devida na hipótese de rescisão de contrato de compra e venda de lote não edificado (ou seja, um terreno sem construção). O fundamento para essa exclusão é simples: não há "uso" ou "fruição" de um terreno vazio que gere enriquecimento para o comprador ou empobrecimento para o vendedor. O comprador não morou nele, não obteve renda com ele, e o vendedor retoma o terreno em sua condição original. A cobrança seria, portanto, um enriquecimento sem causa para a loteadora.
Essa taxa só seria aplicável em imóveis já edificados (casas, apartamentos) onde houve efetiva ocupação pelo comprador.
4. Restituição Imediata: Sem Parcelamento
A Lei do Distrato havia introduzido a possibilidade de a restituição dos valores pagos ser feita de forma parcelada ou apenas ao final da obra, com prazos de carência de até 12 meses após a rescisão, ou 180 dias após o prazo contratual de conclusão da obra.
O STJ, porém, reiterou o entendimento consolidado na Súmula 543/STJ (um resumo de entendimento pacificado pelo Tribunal), afirmando que a restituição dos valores pagos deve ocorrer de forma imediata e em parcela única. O raciocínio é de equidade: se a vendedora retoma o imóvel imediatamente, o consumidor deve ter o direito de receber seu dinheiro de volta sem demora, evitando que fique em desvantagem exagerada. As cláusulas que preveem o parcelamento ou a espera pelo término da obra são consideradas abusivas pelo CDC.
O Que Muda na Prática Com Essa Decisão?
Essa decisão do STJ, ao mesmo tempo em que oferece clareza, representa um reforço significativo na proteção dos direitos do consumidor no mercado imobiliário:
. Para o Consumidor: Aumenta a segurança e a previsibilidade de que, em caso de necessidade de rescisão, a perda financeira será limitada a um percentual razoável e pré-definido dos valores efetivamente pagos, e o valor será devolvido sem longas esperas. Isso dá ao consumidor um poder de barganha e uma garantia judicial mais fortes.
. Para o Mercado Imobiliário: Embora possa ser vista por alguns como uma limitação à Lei do Distrato, a decisão do STJ oferece um balizamento jurídico claro. Ela estabelece os limites para retenções e cobranças, o que, a longo prazo, pode reduzir o número de litígios e trazer maior segurança nas negociações, pois as empresas saberão exatamente o que podem e o que não podem fazer. O setor precisará adaptar suas práticas e contratos para se alinhar a esse entendimento jurisprudencial.
Quais Direitos os Consumidores Podem Buscar Judicialmente?
Com base nesse novo entendimento jurisprudencial, Marcos, os consumidores têm um caminho mais sólido para buscar seus direitos na via judicial:
1. Revisão do Percentual de Retenção: Se a construtora ou loteadora estiver aplicando um percentual de retenção que, somados todos os descontos (multas, despesas administrativas, comissão de corretagem, etc.), ultrapasse 25% dos valores pagos, o consumidor poderá pleitear judicialmente a redução para o limite de 25%.
2. Exclusão da Taxa de Fruição em Lotes Não Edificados: Consumidores que rescindiram contratos de compra de terrenos vazios e tiveram a "taxa de fruição" cobrada poderão questionar essa cobrança judicialmente, com grandes chances de êxito para reaver os valores indevidamente retidos.
3. Exigência de Restituição Imediata: Caso a vendedora insista em parcelar a devolução dos valores ou condicioná-la ao término da obra, o consumidor poderá recorrer ao judiciário para exigir a restituição imediata e em parcela única, conforme a Súmula 543/STJ e a recente decisão.
4. Resolução Contratual Mesmo Após a Lei do Distrato: A decisão reforça que a possibilidade de resolver o contrato por iniciativa do comprador (mesmo que por "insuportabilidade das prestações", ou seja, não conseguir mais pagar) continua sendo um direito assegurado pelo CDC, com as garantias de retenção limitada e restituição justa.
É crucial que, ao se deparar com uma situação de rescisão contratual, o consumidor busque o auxílio de um profissional do direito. Um advogado especializado poderá analisar o contrato, os valores pagos e as condições propostas para a rescisão, orientando sobre os melhores passos a seguir e, se necessário, ingressando com a ação judicial cabível para garantir que os direitos fundamentais do consumidor sejam respeitados, à luz do mais recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Essa decisão da Ministra Nancy Andrighi não apenas pacifica um tema de grande debate jurídico, mas também reafirma o papel essencial do Código de Defesa do Consumidor como guardião da equidade e da justiça nas relações contratuais, especialmente aquelas que envolvem o sonho da casa própria. O equilíbrio entre os interesses das partes, tão buscado pela Lei do Distrato, encontra agora um norte mais claro e justo na interpretação dos tribunais.
*Advogado Sócio do TMatos Advogados Associados, Pós-Graduado em Direito Imobiliário, Pós-Graduado em Direito Contratual e nosso especialista em Dir. Imobiliário.