Quando o prato muda de nome: a geografia dos sabores brasileiros
De canjica a curau, de cuscuz a mexido: levantamento mostra como receitas ganham nomes – e sentidos – diferentes em cada canto do Brasil

Em um país tão vasto e culturalmente diverso, não é de se surpreender que um mesmo prato ganhe nomes diferentes, dependendo da cidade ou do estado onde é servido. Para quem viaja, isso pode causar confusão, mas também pode render boas histórias. A dupla canjica e curau é, talvez, o exemplo mais saboroso – e curioso – dessa confusão nacional.
Estando em São Paulo ou Minas Gerais, ao pedir uma canjica, o mais provável é receber uma tigela com grãos de milho branco cozidos no leite, adoçados com açúcar, e muitas vezes acompanhados de canela e coco. Já se o pedido for feito em Pernambuco ou no Ceará, o que será servido é um creme espesso e amarelo, feito com milho verde ralado, leite e açúcar. Em outras palavras: curau, como é chamado no Sudeste.
Essa troca de nomes não é um erro, mas, sim, um retrato fiel da diversidade linguística e cultural do país. Segundo levantamento do Instituto Brasil a Gosto, feito em 2022, 61% dos pratos tradicionais analisados em mais de 20 estados brasileiros apresentavam variações de nome, ingredientes ou forma de preparo.
A pesquisa foi construída com base em entrevistas com cozinheiros populares, análise de cardápios locais, registros históricos e documentação do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Os alimentos mais envolvidos nessa diversidade foram justamente os de base indígena, como milho, mandioca e feijão.
A Fundação Joaquim Nabuco, em pesquisa publicada em 2021 sobre o vocabulário alimentar brasileiro, identificou mais de 70 expressões diferentes para descrever preparações semelhantes em 12 estados.
A coleta foi feita por meio de entrevistas em feiras, registros orais e análise de receitas em comunidades tradicionais. O estudo reforça como a cultura alimentar brasileira é viva e regionalizada – e que, muitas vezes, uma palavra que remete a afeto no Norte pode significar algo totalmente diferente no Sul.
O caso da canjica/curau não é único. Em Santa Catarina, o “cachorro-quente prensado” é um clássico: pão, salsicha, purê, milho, batata palha, queijo e mais o que couber, tudo prensado na chapa. Em outras regiões, como no Rio de Janeiro, o hot dog é servido no pão francês ou de leite, e as misturas variam de ovo de codorna a ervilha.
Em Minas Gerais, o tradicional mexido vira revirado em Goiás, embora os dois sejam feitos da mesma base: arroz, feijão e sobras do almoço. No Pará, o bolo podre é feito de mandioca fermentada, mesmo ingrediente que dá origem ao mané pelado em Goiás e ao bolo de puba no Nordeste.
E, quando os nomes se repetem, às vezes, o sabor é que muda. É o caso do “cuscuz”: no Nordeste, ele é leve, cozido no vapor e feito com flocos de milho, muitas vezes servido com manteiga ou ovo. Já no Sudeste, especialmente em São Paulo, o cuscuz paulista é um prato compacto, com farinha de milho, legumes, sardinha e decorado em formas com buraco no meio.
No meio desses nomes e receitas, o creme de milho surge como uma espécie de zona de conforto. Salgado, geralmente servido como acompanhamento de pratos com carne, ele é conhecido pelo mesmo nome em várias partes do país.
Mas, curiosamente, ele também conversa com o doce chamado canjica no Nordeste – um creme de milho espesso, adoçado e servido quente, que lembra muito o curau do Sudeste. Ou seja, o creme de milho acaba sendo uma espécie de elo entre esses universos gastronômicos tão diferentes quanto familiares.