A chinelada ideológica das Havaianas :: Por Bia Muniz
Acordei. Café passado. Celular vibrando como liquidificador sem tampa. Timeline em combustão espontânea. Antes mesmo de abrir qualquer link, fiz o gesto automático de todo brasileiro civilizado: olhei para o chão do quarto procurando minhas Havaianas. Estavam lá. Fiéis. Gastas. Companheiras de aeroporto, praia, padaria e vida real. Olhei. Pensei. Suspirei. E disse em voz alta, com a clareza de quem tomou café forte: essa eu não calço mais.
Não foi drama. Foi instinto. Foi corpo reagindo antes da razão. Porque quando uma marca que sempre foi democrática, popular, despretensiosa e feliz resolve acordar militante, a gente sente no pé. Literalmente. Dá uma coceira ética. Um incômodo moral. Uma vontade imediata de ficar descalça só para não participar da encenação.
O Brasil mal terminou o café da manhã e já levou uma rasteira de borracha ideológica. Quando uma sandália criada para proteger o pé do asfalto quente decide proteger a alma do consumidor contra o “pecado” de querer prosperar, não é marketing. É sermão. Daqueles que não pedem dízimo, mas cobram obediência moral.
O slogan “não quero que você comece o ano com o pé direito” não é humor inteligente. É deboche embalado em trilha cool. É publicidade apontando o dedo com sorriso de superioridade. É aquela voz que não grita, mas julga. E julga caro. A campanha veio com atriz famosa, estética de manifesto, cenário simbólico e aquela velha sensação de que alguém, de um sofá confortável, resolveu explicar ao povo brasileiro como ele deve se sentir por querer mais da vida. Tudo muito bem produzido. Tudo muito mal pensado.
E não, isso não nasceu numa mesa de marketing com gente criativa e colorida. Isso passa por diretoria, CEO, conselho, board. Não sejam ingênuos. O problema é que alguém esqueceu de avisar os franqueados. Gente real. Pequenos e médios empreendedores que sustentam a marca. Todos pegos de surpresa. Todos irritados. Todos agora tendo que explicar para o cliente por que comprar uma sandália virou ato político.
O resultado? Um clássico instantâneo. Apagaram o post. Oh. Que surpresa. Descobriram que o Brasil não é uma bolha de agência nem um seminário de virtude performática. Descobriram que consumidor não gosta de ser educado, corrigido ou constrangido enquanto passa o cartão.
E aqui vai a parte que dói mais do que pisar em lego. A marca resolveu conversar com metade do país e virar as costas para a outra metade. Justamente a metade que compra, consome, sustenta e não pede aula de moral no caixa. Isso não é coragem. É burrice estratégica com filtro bonito.
O boicote que veio depois não é histeria. É mercado. É voto com o bolso. É gente dizendo “obrigada, mas não”. Simples assim. Hoje, minhas Havaianas ficaram no chão. Não por moda. Por dignidade. Porque sandália foi feita para andar, não para marchar ideologicamente. E porque começar o ano com o pé direito nunca foi problema. O problema é alguém achar que pode decidir qual pé o Brasil deve usar.