Tese analisa obstáculos enfrentados por pessoas em situação de rua em Sergipe
Estudo de doutorado da pesquisadora Vilma Leite Machado Amorim investiga violações de direitos e as dificuldades na aplicação da Resolução CNJ nº 425/2021 no estado

Milhares de brasileiros vivem nas ruas, lidando diariamente não apenas com a fome, o frio e a violência, mas também com a quase total ausência de acesso aos seus direitos fundamentais. Invisibilizadas pela sociedade, e muitas vezes até pelo próprio sistema que deveria ampará-las, essas pessoas enfrentam um grande desafio: como garantir acesso à justiça para quem não tem um lar, endereço fixo ou documentos de identificação? Quais são as barreiras e negligências que dificultam a inclusão jurídica dessa população?
Com o intuito de evidenciar esse apagamento institucional, a diretora da Escola Judicial da 20ª Região (Ejud-20), Vilma Leite Machado Amorim, dedicou sua tese de doutorado em Direitos Humanos, pela Universidade Tiradentes (Unit), à análise crítica da Resolução nº 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A norma estabelece diretrizes para uma política judicial voltada a pessoas em situação de rua. Intitulada “A pessoa em situação de rua e o acesso à justiça: violação de direitos humanos fundamentais e a implementação da Resolução (CNJ) nº 425/2021, em Sergipe”, a pesquisa reforça o papel da autora como uma das principais vozes em defesa dos direitos sociais no estado.
A escolha pelo tema, embora desafiadora, carrega também uma motivação pessoal. Vilma conta que desde a infância conviveu com ações de apoio a pessoas em situação de rua em sua família. “Isso me despertou muitas perguntas: quem são essas pessoas? Por que chegaram a esse ponto? O que impede sua saída dessa condição? E por que as instituições públicas e privadas não conseguem intervir de forma mais eficiente?”, compartilha.
O aprofundamento acadêmico nesse tema surgiu durante o doutorado, a partir de uma sugestão da então conselheira do CNJ, Flávia Pessoa, envolvida em ações de democratização do sistema de justiça. A proposta de focar na realidade das pessoas em situação de rua foi imediatamente abraçada por Vilma. “Comecei a estudar, ler documentos, participar de discussões... tudo foi se conectando”, relata. Ela destaca ainda que vivenciou de perto a elaboração da Resolução nº 425, durante a gestão da conselheira, o que fortaleceu seu desejo de investigar como essa política vinha sendo aplicada em Sergipe.
Falta de estrutura e ações isoladas
Conforme aponta a pesquisadora, as dificuldades de ordem estrutural são muitas e se perpetuam com o tempo. Embora a resolução determine a criação de comitês locais com representantes do Judiciário e da sociedade civil, Sergipe ainda não conta com esse organismo em pleno funcionamento. “Até agora, o único avanço foi um mutirão em 2023, promovido por um subcomitê do TRT. Temos algumas ações isoladas, mas falta articulação entre os órgãos, com estrutura adequada para funcionar. A resolução prevê pelo menos um mutirão por semestre, mas só realizamos um até hoje”, relata.
Além da falta de articulação institucional, há dificuldades práticas, como a localização dos fóruns, exigência de trajes específicos e ausência de documentos pessoais. “Muitas dessas pessoas perderam seus documentos por alagamentos, furtos ou em ações de limpeza urbana. Sem identidade, não conseguem sequer ingressar com ações judiciais. E mesmo que procurem os tribunais, muitas vezes não há preparo dos servidores para acolhê-las. Existem programas assistencialistas, mas muito pouco se faz para mudar de fato essa realidade. O ideal seria promover transformação, e não apenas assistência temporária”, avalia Vilma.
Falta de dados e invisibilidade nas estatísticas
Na parte teórica da tese, Vilma utilizou uma pesquisa documental com abordagem dedutiva, investigando o histórico do acesso à justiça no país, desde os movimentos de expansão desse direito até as mudanças trazidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004. Depois, direcionou o estudo ao perfil das pessoas em situação de rua, destacando questões como desemprego, pandemia, ausência de moradia e mudanças nos padrões dessa população, como o aumento de famílias vivendo nas ruas.
“Estudei mais a fundo quem são essas pessoas, suas histórias, e como sobrevivem. A pandemia foi um ponto de virada: aumentou muito o número de pessoas sem moradia, devido à perda de empregos e à incapacidade de manter os aluguéis. Isso levou a uma nova configuração: mais famílias nas ruas”, pontua a pesquisadora.
O trabalho também inclui um recorte interseccional, destacando que cerca de 80% das pessoas em situação de rua são homens negros com baixo nível de escolaridade. “Em Sergipe, praticamente não temos dados atualizados, o único levantamento recente foi feito em 2024, em Aracaju. No interior do estado, a ausência de informações é total. Não sabemos quantas pessoas estão nessas condições, nem como chegaram a elas, nem que tipo de apoio já receberam. Os poucos equipamentos existentes funcionam precariamente e estão concentrados na capital. O restante do estado está abandonado. Temos muito a avançar”, relata.
Formação para uma Justiça mais inclusiva
No comando da Ejud-20, Vilma também ressalta a importância da qualificação contínua de magistrados e servidores como forma de promover uma Justiça mais sensível e inclusiva. “A Escola Judicial cumpre sua função ao oferecer os cursos obrigatórios e também investe em capacitações voltadas para temas essenciais, como os direitos de crianças e adolescentes, enfrentamento de violências e formas degradantes de trabalho”, explica.
Para ela, é essencial que os profissionais do Judiciário estejam preparados para lidar com as múltiplas vulnerabilidades que envolvem grupos sociais marginalizados. “A transformação só será possível quando deixarmos de ver essas pessoas como um problema social e passarmos a reconhecê-las como sujeitos de direitos”, afirma.
A pesquisa de Vilma Leite Machado Amorim representa um chamado à ação, tanto para o Judiciário quanto para o poder público e para a sociedade civil. Seu estudo revela de maneira clara as falhas na implementação de uma política que poderia ter um impacto transformador, mas que permanece travada entre a burocracia e a falta de compromisso institucional. Ao indicar caminhos e destacar a urgência de medidas coordenadas, a tese oferece subsídios importantes para a construção de políticas públicas mais eficazes. “Ignorar essas vozes é manter a exclusão de milhares de brasileiros que continuam à margem, inclusive da Justiça”, finaliza.