Aracaju (SE), 19 de outubro de 2025
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 26/01/2019 às 13:19
Pub.: 28 de janeiro de 2019

O INTERROGATÓRIO DE MIGUEL LINO :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo Click Sergipe)

José Lima Santana (Foto: Arquivo Click Sergipe)

Miguel Teixeira de Gouveia Lino era o dono da Gráfica Lino & Sons. Velho tipógrafo dos tempos antigos. Um homem liberal. O pai, Romualdo de Gouveia Lino tinha sido um livreiro apaixonado por política. Dizia-se socialista. A mãe, Dona Gertrudes Teixeira de Gouveia Lino, era professora do Ginásio Amâncio Liberato. Ensinava História Geral. Uma família, pois, dedicada aos estudos e às letras. O irmão mais velho de Miguel andou de namoro com o Partidão, nos fins dos anos 1950. Bandeou-se para o Rio de Janeiro. Foi preso mais de uma vez, quando os militares chegaram ao poder, montados nos tanques, em 1964. Montados nos tanques, mas com o apoio do empresariado ávido por dinheiro e com a guarida de juristas ultraconservadores. Os coturnos foram amparados e ampararam. Foi um dos momentos de troca-troca mais acentuados da República no país, que, um dia, se chamou Pindorama. 

Uma noite de janeiro de 1969, Miguel foi intimado a comparecer ao Quartel do Exército para prestar depoimento. Aliás, ele não foi intimado, na precisão da palavra, considerando o termo jurídico apropriado, mas, sim, foi conduzido de chofre por um cabo e um soldado com farda verde-oliva. Os militares não lhe disseram a razão da condução. Quem haveria de dizer-lhe seria o oficial encarregado. E este era o capitão Jandir Guedes Mourão, filho, neto e bisneto de generais. Era da banda mais dura da chamada linha dura. 

O jipe estacionou no pátio do Quartel. Miguel foi conduzido para uma sala no andar de cima. Na verdade, um cubículo com uma porta de frente e uma minúscula janela nos fundos. O calor era intenso, mesmo sendo noite. Passava um pouco das vinte horas. O conduzido foi deixado sozinho. Trancaram a porta. Numa mesa pequena, uma máquina de escrever antiga. Não demorou muito para adentrarem o capitão e um cabo. Já era outro. Sem cumprimentos, o capitão tomou assento ao lado direito e, na outra cadeira, atrás da máquina, sentou-se o cabo. Começou o interrogatório, feito pelo Guedes Mourão. “O senhor sabe por que está aqui?”, indagou. “Ninguém me disse.”, respondeu o interrogado. “O senhor já vai saber”, replicou o oficial. 

O cabo iniciou a bater na máquina a qualificação do interrogado. Batia com agilidade. Devia ter feito o curso de datilografia da professora Carlota Ribeiro, o único da cidade que dava diploma após seis meses de curso. O outro existente só diplomava com 12 meses. Era um roubo. “O senhor emprega em sua gráfica, Luiz Roberto Bretas e Manoel Pinto Galvão?”, perguntou o capitão. “Sim, senhor”, respondeu Miguel. “O senhor sabe que ambos são comunistas?”. O capitão tinha alterado a voz e pronunciou a palavra “comunistas”, sílaba por sílaba. Miguel não titubeou, apenas franziu a testa: “Não, senhor. Não sabia”. 

Àquela altura, o calor da noite de verão fazia escorrer suor da cara cheia do capitão e dos demais. Ele tirou um lenço do bolso traseiro do lado direito da calça e enxugou o rosto e o pescoço. “O senhor não sabia mesmo ou está escondendo o jogo? As forças da Revolução sabem que o seu irmão é comunista. Ele foi preso duas vezes, no Rio de Janeiro. Vocês comunistas devem ir para Cuba ou para a União Soviética. Aqui não é lugar de vermelhos. A bandeira daqui é verde-amarela. Vocês não vão conseguir implantar a foice e o martelo no solo cristão brasileiro. Não, enquanto as Forças Armadas existirem. E elas vão existir sempre”. Naquele momento, o capitão Guedes Mourão deu um murro na mesa. Estava vermelho, quase da cor da bandeira dos comunas. Enxugou, mais uma vez, o rosto e o pescoço.

Miguel manteve-se impassível. Precisava controlar-se e controlar as palavras. Disse de si para si mesmo: “Cavalo esperto não espanta boiada”. O interrogatório prosseguiu. A todo custo, o capitão queria a confissão de Miguel de que estava acobertando comunistas em sua gráfica. O passado recente do irmão levou o capitão a esmiuçar as vidas dos pais de Miguel e Roberto. O pai também devia ter sido comunista. A mãe, professora de História, não devia ter ficado por menos. O casal já era falecido. Estava tudo anotado na pasta do capitão. Porém, Miguel foi respondendo cada pergunta com firmeza. Em momento nenhum perdeu o controle. “Cavalo esperto não espanta boiada”, repetia para si mesmo.

Passava da meia-noite quando o cabo informou que a fita da máquina de escrever tinha acabado. Mas, o interrogatório, ainda não. O almoxarifado estava fechado. O cabo não sabia onde poderia haver outra máquina igual, para retirar a fita em uso. Então, o oficial só encontrou uma solução: “O senhor vai pernoitar aqui, para, pela manhã, a gente concluir o interrogatório”. Miguel pensou que dormir ali poderia ser o início de um período de prisão. E ponderou: “Capitão, o cabo não poderia usar o outro lado da fita, para a gente concluir isso logo mais”? Foi, então, que o capitão destemperou-se: “O senhor quer acabar com a minha carreira, com a minha vida? Quer que eu use o lado vermelho da fita? O que o major Sérgio Morretes haverá de dizer, quando receber este depoimento, metade em tinta vermelha? O senhor quer me entregar, eu que odeio comunistas, ou o senhor está se entregando, está declarando que também é comunista, como seu irmão, como seus pais, como esses dois empregados seus? Vocês todos são camaradas. Não é isso”? Estava possesso.

Àquela altura, Miguel tinha certeza que se pernoitasse ali não sairia facilmente. Jogou uma última cartada: “Capitão, não é nada disso. Veja bem: a tinta da fita é vermelha. O papel é branco. A tinta da caneta com a qual eu vou assinar o meu nome é azul. Vermelho, branco e azul são as cores da bandeira americana. Não tem nada de comunista, por favor. Além disso, veja o senhor o nome da minha gráfica: “Lino & Sons”, ou seja, como o senhor sabe, “sons” quer dizer “filhos”, em inglês. Eu não tenho nada a ver com os russos. Eu sou pró Tio Sam”. 

O capitão Jandir Guedes Mourão levantou-se. Empertigou-se. Leu o cartão que Miguel acabara de lhe entregar. Lá estava: “Gráfica Lino & Sons”. Sim, ele sabia muito bem. Tinha estudado inglês no Ginásio, no Científico e na Academia Militar. Estava certo. Quem usava uma palavra em inglês no nome da firma não poderia ser adepto dos russos. Além do mais, também fazia sentido a tríplice coloração: vermelho, azul e branco. Eram, sim, as cores da bandeira dos aliados ianques. O major Sérgio Morretes não teria o que reclamar. Mandou virar a bobina da fita. O interrogatório prosseguiu bem mais ameno. Às duas e vinte da madrugada o jipe levou Miguel para casa. Por enquanto, estava salvo.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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