Artes do Capiroto :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*
As artes do capiroto estavam se espalhando pelo mundo. Ali mesmo, em Beira Alta, nas margens do rio Biriba, ele estava fazendo das suas. O padre Roque Pinto esbravejou no sermão do domingo último, alertando que o povo precisava orar e vigiar, para que a graça de Deus desmantelasse as artes do inimigo. “Levantai-vos cristãos e cristãs! Levantai-vos contra o inimigo de sempre, contra o leão rugidor, a besta-fera”.
Deu para andar de cabeça virada uma tal de Maria Quenga, que não era quenga nem nada, mas o apelido vinha de uma iguaria que ela era mestra em preparar, o caldo de quenga, apreciado por homens e mulheres, no seu boteco, um reles cacete-armado debaixo do cajueiro ao lado da casa de Josefina Bole-Bole, no cruzamento do Beco do Grude com a Rua Nova. Beco do Grude. Se soubessem o porquê desse nome... Vigemaria!
O caldo de quenga era feito com macaxeira cozida e batida no liquidificador. Peito de frango cozido com coentro, cebolinha, cheiro verde, alho, cebola roxa, pimenta de cheiro, cominho, colorau e azeite de oliva. Fazia-se um caldo em separado com os mesmos temperos acima citados, refogando-os. Depois, passava no liquidificador. Desfiava-se o frango. Juntava tudo e ia colocando pouca água até dar o ponto, em fogo brando. Era o caldo de quenga. Manjar dos deuses.
Pois Maria Quenga andou de foloteio com o velho Tupi Caçote, um viúvo ricaço, dono de duas mil cabeças de gado e um sem-fim de terras. Maria era uma quarentona bem fornida, resguardada, pelo que se sabia, sem nunca ter dado fiança aos moleques do seu tempo de moça, nem a machos afoitos, na maturidade. Era mulher de sua casa, de seus quefazeres. Morava sozinha, depois que a mãe Dona Zulmirinha se foi desta para a outra vida. Ao aproximar-se dos quarenta e cinco, eis que virou a cabeça para Tupi Caçote, ao largo de seus oitenta e dois. A filha do fazendeiro, Celeste, casada com o escrivão Valdomiro de Maneca Pirulito, foi quem aproximou o casal. Todavia, seus dois irmãos, Floriano e Fernandes, soltaram os cachorros para cima de Maria Quenga.
A mulher de Floriano, que andava de beiço arreado de tanto rezar o terço, adulando o padre Roque Pinto, dia e noite, esbravejou que Maria Quenga devia estar possuída pelo demo para dar assim em cima do seu sogro. “Se não for sem-vergonhice, é coisa do capeta, do capiroto, a atear fogo em suas partes”. Língua ferina de beata sem Jesus no coração.
Era 19 de março, dia de São José, padroeiro da cidade. Devotos de várias partes do sertão acorriam à festa. Maria Quenga triplicava os acepipes do boteco. Todo ano era assim: São José Operário arrastava milhares de devotos, para ver a imagem do santo, vinda de Portugal, em 1830, trazida pelo padre João Marinho, natural do Porto.
Lá pelas 11 horas, Tupi Caçote, cujo nome de batismo e de registro cartorial era Tupinambá Argolo de Souza e Freitas, bateu ponto no boteco de Maria Quenga. E foi aí que o capiroto deu a cara, fez folia, montando no cangote de Robertinho de Julião Coceira.
Mal e mal Tupi cumprimentou Maria, Robertinho, com sua verve ferina, que a todos gostava de atanazar, indagou ao velho fazendeiro: “E então, ‘seu’ Tupinambá, o senhor vai mesmo montar nessa potranca no cio, Maria Quenga, cujos três vinténs o chão estava certo de comer? E o senhor tem gás para tanto, ou vai deixar alguém lhe fazer as vezes”? Esse despautério era ou não era armada do tinhoso?
Tupi Caçote, apesar da idade, era um sujeito roliço, acostumado com a vida nos pastos e nos currais. Levantou-se do tamborete, marchou para Robertinho e sapecou-lhe na cara o rebenque de tanger cavalos. O cabaú desceu das ventas do galhofeiro. O golpe fez-lhe tombar e segurar-se numa galha baixa do cajueiro, sem fôlego. Com o sangue escorrendo sobre a camisa, ele gritou: “Velho maldito da peste, vou lhe mandar pra cidade de pé-junto”. Sacou de uma faca peixeira e avançou contra Tupi, que recuou um passo. A faca quase tocou o peito do fazendeiro. Alguém gritou: “Vai matar o velho”!
Um pássaro agourento cantou no mamoeiro da casa de João Filipinho, ali em frente: “Buraco feito. Buraco feito”. O estampido de um tiro de espingarda fez-se ouvir. O tiro acertou a perna direita de Robertinho, que foi atirado a uma distância de uns três metros. Quem atirou? Ela. Sim, ela mesma, Maria Quenga. A Polícia foi chamada. Para a delegacia foram Tupi Caçote, Maria Quenga e mais seis testemunhas. Para Morro Azul, cidade com maiores recursos médicos, Robertinho foi levado no carro da Prefeitura.
No depoimento prestado ao tenente Valeriano Canuto, Maria Quenga disse, cheia de si: “Só fiz defender a vida do meu homem”. Na cidade, dois partidos se formaram. Um dizia que o casamento de Tupinambá com Maria Quenga, eram favas contadas. O outro partido, porém, afirmava que ela poderia botar a imagem de Santo Antônio no pote, para ver se arranjava outro. Com Tupi Caçote ela não arranjaria lenha para o fogo.
Bem. Eu saí de Beira Alta, nas margens do rio Biriba, ainda menino. Nunca mais voltei. Não sei qual o desfecho do caso entre Tupi e Maria. Se alguém souber, conte-nos.