FLUTUANTE 1100 x 284
Aracaju (SE), 02 de setembro de 2025
POR: Ricardo Westin
Fonte: Agência Senado
Em: 29/08/2025
Pub.: 01 de setembro de 2025

Cota racial: quem tem direito e por que documentos não definem cor

Cota racial: quem tem direito e por que documentos não definem cor - Foto: Fernando Ribeiro com auxílio de inteligência artificial (OpenAI GPT5)/Agência Senado

Para concorrer em concurso público ou vestibular pela cota racial, tenho de obter um laudo dermatológico que ateste que sou negro? A minha certidão de nascimento precisa informar que a minha cor é preta ou parda? Posso apresentar fotos do meu avô negro?

A resposta para todas essas perguntas é não. Depois que um candidato negro às vagas reservadas passa na prova, o que comprova a raça autodeclarada na inscrição é somente a análise feita por uma comissão da respectiva instituição.

Normalmente a partir de uma foto ou um vídeo atual do concorrente, os integrantes dessa banca — a chamada comissão de heteroidentificação — avaliam se seus traços físicos, como cor da pele, formato do nariz e textura do cabelo, são associados ao preconceito racial.

O professor Rodrigo Ednilson de Jesus, presidente da Comissão de Ações Afirmativas e Inclusão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coautor do livro A Raça que os Olhos Veem: como controlar a subjetividade dos procedimentos de heteroidentificação racial (Editora UFMG), explica:

— A autodeclaração é a forma como eu me vejo, e a heteroidentificação é a forma como os outros me veem. Para o candidato ter direito à vaga reservada, essas duas dimensões precisam coincidir. O que se considera são os traços fenotípicos, porque o racismo brasileiro não é um racismo de ascendência, que vê quem foram os meus antepassados, mas, sim, um racismo de marca, que lê as características do meu corpo. Muitos candidatos evidentemente negros [com a pele clara] chegam à etapa da heteroidentificação inseguros, com medo de não ser aprovados. Isso, no fundo, é um efeito do próprio racismo sobre essas pessoas.

De acordo com o professor Rogério Monteiro, um dos diretores da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (USP), as comissões de heteroidentificação precisam ser o mais diversas possível, compostas de pessoas de diferentes raças, gêneros, origens e formações:

— Existem variações e instabilidades no modo como o Brasil enxerga a raça. A forma como se reconhece uma pessoa negra muda conforme o estado, a cidade, o bairro, o contexto social, o momento histórico. Em certos lugares, eu, que sou negro, causo estranheza ou sou até barrado, mas, em outros, passo desapercebido. É para reduzir essas variações de leitura que as comissões são heterogêneas. Na USP, um candidato que foi rejeitado na primeira análise passa depois por outras comissões e, no fim, ainda pode ser avaliado por um grupo maior, com 50 pessoas. Isso diminui muito as possibilidades de erro.

Monteiro esclarece que as comissões de heteroidentificação não são “tribunais raciais” que determinam a identidade racial de uma pessoa. A identidade negra, segundo ele, inclui vários outros fatores além dos traços físicos, como o pertencimento familiar e social e o tipo de tratamento dispensado pela sociedade. O que as comissões fazem, ressalta Monteiro, é apenas decidir se o candidato atende às exigências da cota racial — que se restringem à aparência.

Prevista em leis federais, estaduais e municipais, a cota racial busca, entre outros objetivos, garantir igualdade de oportunidades aos negros (que enfrentam barreiras maiores para chegar ao serviço público e à universidade devido às condições de vida precárias impostas pelo racismo estrutural) e aumentar a sua representatividade nesses espaços, de modo a melhor refletir a diversidade da sociedade brasileira. Os negros respondem por 55,5% da população nacional.

Veja como funciona a cota racial:

Candidato

Nos concursos para o serviço público federal e nos vestibulares das universidades federais, as vagas da cota racial podem ser disputadas apenas por pessoas autodeclaradas negras — ou seja, pretas e pardas (miscigenadas ou mestiças). Isso significa que os candidatos negros de pele mais clara concorrem em igualdade com aqueles de pele mais escura. As instituições estaduais e municipais têm autonomia para também criar cota racial nas suas seleções.

Inscrição

O candidato que deseja disputar uma vaga da cota racial deve marcar essa opção no formulário de inscrição e autodeclarar-se negro. Feito isso, ele participa normalmente das provas com os demais concorrentes, mas disputa diretamente apenas com outros candidatos negros as vagas reservadas. A adesão à cota racial é opcional — o candidato negro pode escolher concorrer às vagas de ampla concorrência (vagas não reservadas).

Comissão de heteroidentificação

Se for aprovado, o candidato autodeclarado negro é avaliado por uma comissão de heteroidentificação, que verifica se ele tem direito à vaga reservada no serviço público ou na universidade. As instituições contam com suas próprias comissões de heteroidentificação, formadas por pessoas de perfis variados (homens e mulheres, brancos e negros, internos e externos à instituição) que são treinadas para realizar essa identificação. O objetivo é garantir que a ação afirmativa beneficie o público-alvo, evitando fraudes.

Traços físicos

Para verificar se o candidato aprovado na cota racial é mesmo negro, os integrantes da comissão de heteroidentificação avaliam o fenótipo — traços físicos como cor da pele, formato do nariz e textura do cabelo. Normalmente, o candidato não precisa ser avaliado em pessoa. Ele envia pela internet uma fotografia ou um vídeo atual, com boa iluminação e sem maquiagem, filtro ou retoque. A análise é feita exclusivamente a partir da imagem.

Documentos?

A comissão de heteroidentificação avalia somente o fenótipo do candidato aprovado. Isso significa que, para fins de preenchimento da cota racial, não são admitidos como prova de negritude a certidão de nascimento com o registro de que a pessoa é negra, fotografias de pais e avós negros nem laudos médicos, dermatológicos, genéticos ou antropológicos. Tampouco valem documentos mostrando que o concorrente foi considerado negro pela comissão de heteroidentificação de outro concurso público ou vestibular.

Certidão de nascimento

A raça registrada na certidão de nascimento é aquela informada livremente pelos pais logo que o bebê nasce. Ainda que o documento registre como branco o candidato autodeclarado negro, ele pode concorrer pela cota racial porque a informação contida na certidão não deve ser considerada nesse caso. O que conta são apenas os traços físicos aferidos pela comissão de heteroidentificação.

Votos da comissão

Cada comissão de heteroidentificação costuma ser formada por um número ímpar de integrantes — três ou cinco, por exemplo. Isso impede que haja empate, com uma metade dos integrantes avaliando que determinado candidato é negro e a outra avaliando que ele não é negro. A decisão é tomada pela maioria, não precisando ser unânime.

Quando a comissão conclui que o postulante não é negro, é comum que o caso vá para uma segunda comissão, que fica responsável pela palavra final. Há instituições cujas comissões, em situações de dúvida, fazem videochamada com o concorrente ou até mesmo o convocam em pessoa. Não se costuma fazer entrevista nem permitir que o candidato argumente.

Recurso

Quando não é admitido na cota racial, é comum que o postulante tenha a possibilidade de recorrer da decisão na própria instituição. Nesse caso, outra comissão de heteroidentificação estuda a foto ou o vídeo previamente analisado e bate o martelo.

De forma geral, se mesmo assim a dúvida persistir, a recomendação é que se decida a favor do candidato, permitindo seu ingresso no serviço público ou na universidade. Quando o concorrente é rejeitado e não houve má-fé ao se autodeclarar negro, ele é automaticamente transferido para a disputa das vagas de ampla concorrência (vagas não reservadas).

Fraude

Se houver denúncia (ou indício) de fraude ou má-fé do candidato aprovado pela cota racial (ou seja, a suspeita de que ele tenha concorrido a essa vaga mesmo sabendo que não é negro), o caso será apurado administrativamente pela própria instituição onde ele foi admitido, seja no serviço público ou na universidade.

Se for constatado o crime, a admissão será anulada e ele será denunciado às autoridades, como o Ministério Público, para que o caso vá para a Justiça. Além de responder criminalmente, o fraudador pode ter de ressarcir os cofres públicos.

Número de vagas

A cota para negros (pretos e pardos) nos concursos públicos federais é diferente da cota para negros nos vestibulares federais. Nos concursos, a reserva é puramente racial, com 25% das vagas destinadas a pessoas negras (pretas e pardas), independentemente do nível social.

Nos vestibulares, por sua vez, a reserva é social, com 50% das vagas destinadas a alunos que estudaram todo o ensino médio em escola pública. Dentro dessa cota, existem diferentes subcotas, uma delas racial, cuja porcentagem varia de estado para estado.

Essa subocota racial é proporcional ao tamanho da população negra do estado onde a universidade se localiza. Por exemplo, se o IBGE indicar que 50% dos habitantes de determinado estado são negros, 50% da cota social para vestibulares federais irá para estudantes negros oriundos de escola pública — o que equivale, portanto, a 25% das vagas totais.

A cota social e a subcota racial também valem para o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que utiliza a nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para selecionar estudantes para as universidades federais. A mesma reserva se aplica à seleção de alunos das escolas técnicas federais de nível médio, que precisam ter cursado todo o ensino fundamental em escola pública.

Nos concursos públicos federais, a cota é regida pela Lei 15.142 e pelo Decreto 12.536, ambos de 2025. No Sisu e nos vestibulares federais, pela Lei 12.711, de 2012 (atualizada pela Lei 14.723, de 2023). Essas normas não se aplicam a instituições estaduais e municipais, que têm autonomia para criar normas próprias tratando da reserva de vagas.

Outras cotas

As leis federais também preveem cotas para outros grupos minoritários e discriminados. Nos concursos públicos federais, 3% das vagas são reservadas para candidatos indígenas e 2%, para quilombolas.

Na seleção para universidades e escolas técnicas federais, dentro da cota social de 50% (para alunos que cursaram em escolas públicas todo o ensino médio, no caso da seleção para as universidades, ou todo o ensino fundamental, no caso da seleção das escolas técnicas), existem subcotas para indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, proporcionais ao tamanho dos respectivos grupos no estado em que a instituição se localiza.

Estados e municípios têm autonomia para criar leis sobre reserva de vagas também para esses grupos.

Edição: Ricardo Koiti Koshimizu


O Mundo não para. Confira mais notícias no Canal do Click Sergipe no WhasApp

Conheça os melhores destinos em sergipe - Pontos Turísticos

WhatsApp

Entre e receba as notícias do dia

Matérias em destaque

Click Sergipe - O mundo num só Click

Apresentação