Vida de Padre :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*

O padre Juca já contava com trinta e cinco anos de ministério sacerdotal. Ordenou-se aos vinte e cinco. Estava, pois, com sessenta anos. Diabético e hipertenso, guloso como uma máquina de moer mandioca, conhecida na região como rôdete ou caititu, caminhava a passos larguíssimos para a obesidade. Quando algum enxerido lhe perguntava “O que é isso na barriga, padre Juca”?, ele respondia: “São as minhas lombrigas de estimação”. E ria desbragadamente. Era um bom sujeito, maneiroso, conciliador, até no meio do Clero. Às vezes, até o senhor bispo lhe pedia valimento em questões que envolviam os padres. Porém, se alguém lhe pisava nos calos, ele virava a mesa. Não era de aguentar desaforos.
Na Paróquia Sagrada Família, no Taboão da Montanha, onde o padre estava há pouco mais de um ano, sobravam beatas de língua ferina, como noutras Paróquias também. Era o mal das Paróquias? Podia ser. Podia não ser. Ali, no Taboão, dentre muitas, tinha Dona Elvirinha, viúva apatacada, igrejeira, que muito tinha, mas pouco dava. Todavia, em termos de língua, nenhuma se igualava à sua. O padre Juca não morava na casa paroquial que, a bem dizer, era um arremedo de casa. ‘Destiorada’. Dinheiro para recuperar não tinha. O padre, com a ajuda de Marcelo pedreiro, andou fazendo uns reparos, para a casa não desabar de vez. Então, ele ficava de dormida em casa de sua irmã solteirona, Dona Clotilde, na cidadezinha logo ali, Matos de Dentro, cerca de quatorze quilômetros de distância. Pertinho. De manhã, ele vinha; à noite, ele voltava.
Num desses retornos, eis que Dona Elvirinha lhe atocaiou na Rua do Meio. Deu com a mão. O padre parou o velho Jeep verde-escuro. O freio não estava bom e o carro parou um pouco adiante da viúva faladeira. O padre deu ré. “Pois não, Dona Elvirinha. O que a senhora deseja, a esta hora”? E ela: “Né nada não, padre Juca. Mas, umas amigas minhas querem saber porque o senhor vai e volta todo dia e toda noite. Para onde o senhor vai assim toda noite”? O velho padre mexeu-se no banco duro do Jeep. Olhou com firmeza para Dona Elvirinha, cheia da grana e mão de figa. Suspirou. Um bafo quente desprendeu-se de sua boca. “Olhe aqui, Dona Elvirinha, eu vou toda noite para a casa da minha nêga. É lá que eu durmo”. A velhota abriu a boca e proferiu um “Cruz credo”! Arregalou os olhos e persignou-se. Passando a primeira marcha, depois a segunda, o padre Juca arrancou no Jeep, fumaçando e tirando fogo dos paralelepípedos.
Doutra feita, Maria de Doca, mãe de sete filhos, formando uma escadinha, bateu na casa paroquial, por volta do meio-dia, quando o padre Juca estava se refestelando com uma buchada de bode, feita pelas mãos divinas de Sá Marina, a mais festejada cozinheira da cidade, dona do “Boteco de Sá Marina”, onde os grandes e os pequenos da cidade comiam a preços módicos. E comiam delícias.
Como era de seu costume, o padre mandou a paroquiana entrar. “Sente aí e desembuche, minha filha”. Enxugando o suor da testa com a mão esquerda, Maria de Doca disse: “Padre, meu filho caçula, Nitinho, esteve para morrer nesses últimos dias. Eu fiz uma promessa à Sagrada Família, para ele ir nos braços do senhor, na procissão do mês que vem. O menino sarou de repente. Então, eu vim lhe pedir para levar o meu filho nos seus braços, diante da imagem da Sagrada Família”.
O padre Juca largou o garfo onde estava um bocado da buchada, misturada com pirão. Coçou o queixo. Quis dizer um impropério. Conteve-se. “Minha senhora, você acha mesmo que eu vou fazer isso? Que o padre vai fazer isso? Então, a senhora faz a sua promessa, para o padre ter que pagar? Hein? Onde já se viu isso? Quem faz suas promessas é quem deve pagá-las. Você a fez, você a pague. E estamos conversados”.
O padre voltou a deliciar-se com a buchada de Sá Marina. Pacientemente. Por um instante, Maria de Doca ficou sem ação. Depois, foi-se retirando de mansinho. Na calçada, ela gritou: “Vou mandar escrever ao bispo contra o senhor”. Engolindo o bocado que estava na boca, o padre respondeu: “Escreva ao bispo e ao papa, mas eu não pago promessa feita por ninguém”.