Projeto quer ampliar circuito de cinema negro em quilombos de Sergipe
Iniciativa levou exibições a três comunidades quilombolas e articula novas edições

O projeto Rota dos Quilombos percorreu em julho três comunidades quilombolas do estado de Sergipe com sessões gratuitas de cinema seguidas de rodas de conversa. Realizadas pelo Cineclube Candeeiro, em parceria com a EGBÉ — Mostra de Cinema Negro, as atividades aconteceram nos territórios da Mussuca (Laranjeiras), Brejão dos Negros (Brejo Grande) e Aguada (Carmópolis), reunindo cerca de 50 pessoas em cada localidade. A iniciativa promoveu o acesso ao cinema negro brasileiro, estimulou debates comunitários e fortaleceu as identidades quilombolas por meio da exibição de filmes realizados ou protagonizados por pessoas negras e indígenas. Com acolhida positiva das comunidades, o projeto articula uma nova edição para alcançar outros quilombos do estado.
Idealizado pelo Cineclube Candeeiro, o projeto construiu uma curadoria voltada à valorização de narrativas negras e indígenas, orientada pelo pensamento da historiadora sergipana Maria Beatriz Nascimento. A pesquisadora defendia a imagem como elemento fundamental para a reconstrução da identidade negra. A Rota dos Quilombos visou interiorizar o circuito de cinema negro, formar público, estimular o senso crítico e contribuir com a autoestima das populações quilombolas.
Territórios vivos: cultura e presença quilombola
A primeira parada aconteceu na Mussuca, maior quilombo de Sergipe, localizada em Laranjeiras. A programação integrou o Arraiá Cultural Cozinha de Vó e uniu cinema, culinária ancestral e celebração popular. Para Alexandre Marques, coordenador do projeto Cozinha de Vó, a iniciativa resgata modos de vida ameaçados e fortalece as juventudes: “Uma comida que respeita o tempo do alimento ser tirado da roça, a agricultura familiar orgânica, o pescado, marisco, vêm dos nossos manguezais, da marisqueira, do pescador artesanal, então é esse conjunto de saberes, fazeres para guardar essa memória e garantir que jovens como eu e outros, tenham acesso a esses saberes e a ancestralidade permaneça aqui”, afirma.
Em Brejão dos Negros, a sessão aconteceu em parceria com o Coletivo Dandaras e contou com uma apresentação do grupo infantil Kekero Wá. A peça foi escrita por Claudeane Bispo, uma das lideranças do quilombo, em parceria com sua filha. O espetáculo abordou a vivência quilombola a partir da perspectiva das crianças, com elementos da religiosidade afro-brasileira, dança e teatro. “Sou catequista da Igreja Católica, mas isso não causa impedimento para apresentar os ensinamentos do candomblé. Vi a necessidade de ensinar às crianças para que elas não apenas conhecessem, mas soubessem contar suas próprias histórias”, pontuou Claudeane.
A última parada foi na comunidade de Aguada, em Carmópolis, onde a exibição ocorreu na sede do centenário grupo Samba de Aboio. A sessão reuniu moradores de diferentes gerações e foi marcada pela exibição do filme “O ano que a onça descansou”, produzido no próprio território. Para Genilson Mota de Assis, mestre do grupo, rever imagens de pessoas queridas que já partiram foi um momento de profunda emoção. “O difícil é preservar a memória e o legado dos que já se foram”, destacou. A moradora Valdiene Vieira Santos também se emocionou com as imagens do pai e do tio na tela: “É gratificante ver que a memória deles continua viva”.
Mostrinha Vunji e o olhar para a infância negra
Cada comunidade visitada pela Rota dos Quilombos recebeu duas sessões de cinema: uma voltada ao público adulto e outra dedicada às crianças, com a exibição da Mostrinha Vunji, curadoria da EGBÉ — Mostra de Cinema Negro. A programação infantil foi cuidadosamente pensada para valorizar personagens e narrativas negras e indígenas desde a primeira infância, reconhecendo o papel das imagens na construção da identidade e no fortalecimento do pertencimento. Em Aguada, a recepção das crianças foi acompanhada de perto pelos familiares. “Dificilmente vemos filmes infantis que destacam a vivência de crianças negras. Minha filha me olhava o tempo inteiro, curiosa, e tenho certeza que, quando a gente chegar em casa, ela vai fazer muitas perguntas”, relatou Maiza Menezes de Assis após a sessão. A presença dessas narrativas na tela ampliou o espaço de imaginação para meninos e meninas quilombolas, reafirmando o cinema como ferramenta educativa e de valorização cultural.
O produtor executivo do Cineclube Candeeiro, João Brazil, destaca a recepção das comunidades. “Ficamos muito satisfeitos por levar o cinema negro para o interior, onde infelizmente ainda há pouco acesso a essa atividade. A recepção das comunidades foi gratificante, com acolhimento e parcerias importantes em cada lugar. Isso fortaleceu a nossa rede e a nossa atuação. Levar o cinema também permite que as comunidades se vejam, construam um diálogo com as narrativas dos filmes e tragam questões próprias para as rodas de conversa. Isso enriquece muito o projeto”, afirma.
Próximas edições e continuidade do projeto
Com a Rota dos Quilombos, o Cineclube Candeeiro reafirma seu compromisso com a democratização do acesso ao cinema e a valorização das comunidades negras de Sergipe. A coordenação do projeto já articula novas edições do circuito, com o objetivo de alcançar outros quilombos do estado que ainda não foram atendidos. A proposta é seguir interiorizando o cinema negro nacional, levando às comunidades do interior obras que dialoguem com suas vivências, saberes e memórias. Ao fim deste ciclo, permanece o vínculo com os territórios visitados e a perspectiva de continuidade, ampliando o papel do cineclubismo como prática educativa, cultural e comunitária.